Vida e morte de Mariana Janeiro<br>no livro Joana Campeoa, de Joseia Matos Mira
Venho de um tempo – sem rebarbativos saudosismos nem penumbrosos remorsos – em que a literatura era uma tarefa cívica, um acto de responsabilidade, e se fazia por impulsos ditados pelos imperativos de um quotidiano agreste e cinzento. Dizia-se, então, que estávamos a tentar salvar o mundo. Ressalvando a pretensão, o certo é que os nossos textinhos, se não salvaram o mundo (e, pelo jeito que ele hoje se apresenta, nem sequer o beliscámos e o tornámos mais habitável) serviram para deixar algum lastro geracional, testemunho de um tempo e alguma argamassa para quem, num futuro quimérico, se tiver paciência e talento, estude e reflicta sobre este tempo amargo que nos coube viver e dele tire ensinamentos para que se não repitam as atrocidades, os atropelos, as infâmias que sofremos e de que fomos testemunhas.
Claro que também vivemos as lutas, as vitórias, o clamor jubiloso da segunda metade do século XX e, dessa voz rasgada ao futuro, deixamos um canto que, embora esmaecido pelas usuras do neoliberalismo, ainda hoje perdura – pelo menos ao nível dos imaginários.
Se não mudámos o mundo demos, nesses anos de brasa, muito trabalho aos censores.
Por impulsos, dizia, escrevíamos de uma forma não necessariamente inspirada (os 10% de inspiração e os 90% de transpiração da gíria), mas expositiva. Ou seja, escrevíamos por imperativos éticos e morais, por mera questão de salubridade mental, num tempo acantonado entre Guernica e Hiroxima, para que a fuligem dos dias nos não tragasse impiedosa: para respirarmos o ar lavado das madrugadas que sonhávamos. Escrever era, para nós, mais que uma trincheira; um acto de sobrevivência, uma urgência, uma rebeldia que nos aconchegava ao mundo e nos permitia suportar o caos.
Se a literatura que então se expunha nos escaparates não era arrumada, impoluta, ou tocada pela genialidade (pelo menos pela genialidade advogada, reaccionariamente, por Fernando Pessoa e, mais tarde, pela geração da Presença), essa trincheira ideológica conseguiu, mesmo cercada, produzir, nessas refregas, muitos poemas e romances que tocaram as margens da grande literatura e são hoje incontornáveis e canónicos textos. Mas havia, isso sim, lisura, frontalidade, inventiva. A pólvora rebentava-nos nas mãos e nós seguíamos carregando a escopeta mais uma e outra e outra vez. Heróis? Nem por isso: vítimas apenas de um tempo de pragas e más colheitas.
O que fazíamos nos cafés, nas tertúlias era o que, modelado a preceito, com paciência de artesão, publicávamos nas editoras e nos jornais que tinham a coragem de nos abrir espaço cúmplice. Andávamos, então, nesta seara de letras, e de muitos ventos adversos, ao mesmo – ou quase, como depois se viu. Escrever e publicar era um risco, como tudo na vida. Não éramos mercenários da escrita; apenas inventores de um mundo outro povoado por gente sofrida, gente de antes quebrar que torcer, que lutava e se erguia do chão com as feridas abertas e o coração generoso sangrando, em tumultos, no peito.
E os livros eram apreendidos, os artigos censurados, os autores perseguidos. Que importava: estávamos vivos e escrevíamos sol!
Hoje, que os malabarismos de entrelinhas não são, aparentemente, necessários, o cortejo que vemos é degradante, rasteiro, a bater no fundo dos fundos – no seu putrefacto lodo. Estômago temos para tanto sufoco. Hábitos, que a memória é um animal voraz. Mas dói, nas dores da alma, se ainda a tivermos de tão em voo desasado ela anda, inquieta e indignada que só o vómito lhe adivinhamos na sombra rasa.
A pífia ideológica deste sucesso bronco, socrático, besunta-nos o intelecto e apetece abrir portas e janelas, mesmo com frio e neve, para que o vento volteje e o mau-cheiro se evada lesto.
Atendamos às montras dos hipermercados, aos impérios de Belmiros e quejandos, os quais, nesta sôfrega compita pelo lucro a todo o trote, nem o livro poupam. Mas não são livros, senhores, o que ali vedes: é plástico não reciclável, anestésicos para um sono profundo, o supremo e soberano império da desordem e dos caos, tornado sofista de absolutos, que não gera a revolta, o sentido crítico mas a submissão mais ultrajante. O contrário, portanto, do que deva ser a literatura. Os supostos caracteres com que a língua se estrutura reduzidos à sua ínfima condição – a de narcótico. Estas coisas em forma de livro só deveriam vender-se com antídotos acopláveis, ou servir para acender lareiras como fazia o detective Pepe Carvalho do malogrado Manuel Vasquez Montalbán.
Ó Alentejo dos pobres/reino da desolação/Não sirvas quem te despreza/é tua a tua nação. Não vás a terras alheias/lançar sementes de morte/é na terra do teu pão/que se joga a tua sorte./Terra sangrenta de Serpa/terra morena de Moura/vilas de angústia em botão/dor serrada em Baleizão. Ó margem esquerda do Verão/Mais quente de Portugal/Margem esquerda deste amor/Feito de fome e de sal. A foice dos teus ceifeiros/Trago no peito gravada/Ó minha terra morena/Como bandeira sonhada.
Esta «Margem Sul», de Urbano Tavares Rodrigues, «canção patuleia» que Adriano Correia de Oliveira compôs e cantou como só ele sabia, é dos hinos mais intensos e impressivos que diz, com a lisura rasante da angústia em botão, a saga de um povo que viveu séculos de opressão e esconjuro, primeiro, sob a pata fanática e bestial da Inquisição, depois, sofrendo a fome, as perseguições, a tortura e a morte, no longo e absurdo consulado salazarento.
Nenhum outro povo deste País viveu e sofreu tão longo período de persecutória e cruel opressão e, apesar disso, continuou a lutar e a acreditar que era possível mudar-lhe a sorte, que nada é imutável nem eterno, que o homem pode, acreditando, torcer o aziago destino.
A Inquisição de Évora, que durou de 1533 a 1668, perseguiu, torturou e condenou às fogueiras regeneradoras, milhares de alentejanos (e não só) suspeitos de heresias, de serem cristãos-novos, de gostos sexuais considerados desviantes – como a bigamia e a mancebia – de judaísmo, luteranismo, ateísmo, bruxedo. Mas, de igual modo, a Inquisição exerceu o seu magistério de terror sobre quem não obedecesse às ordens dos grandes senhores da terra, quem se recusasse a trabalho escravo, quem se rebelasse contra o poder feudal.
É essa recusa ancestral, essa dignidade do humano, que o salazarismo tenta vergar com a sua corte de bufos e eunucos, o seu exército de delatores e a sua sinistra polícia secreta.
Uma das vítimas da repressão do ditador foi Mariana Janeiro, costureira de Baleizão, que a PIDE prendeu em Abril de 1964 e sujeitou à tortura do sono durante 18 dias e noites. Presa e seviciada barbaramente – de uma das vezes, os esbirros chegaram a queimar-lhe os olhos com fósforos –, Mariana Janeiro nunca falou, suportando estoicamente a barbárie, recusando-se a revelar os nomes dos seus camaradas que pertenciam ao Comité Local de Baleizão.
Mariana Janeiro faleceu a 6 de Abril de 1993, formalmente vítima de AVC mas, na realidade, vitimada por dentro, até ao osso da dignidade mais elementar, pelas sevícias sofridas às mãos dos torcionários da PIDE, nas diversas vezes em que esteve presa.
É a história singular de Mariana Janeiro que Joseia Matos Mira, escritora natural da terra de Catarina Eufémia, nos conta, de forma sentida, empolgada e exemplar, no romance Joana Campeoa.
O romance parte das memórias de infância da autora, percorre esse universo de medo e raiva dos anos mais negros do fascismo, para nos dizer da fome, do desencanto, do clamor sofrido de um povo que, mesmo no estertor infamante da miséria, foi capaz de sonhar, de se erguer, de se indignar até à revolta.
Joseia Matos Mira traça um retrato sensível e impressivo de Mariana Janeiro, desde a infância, quando esta, levada pela mãe e, mais tarde, sozinha, teimava em ir à escola e era sempre preterida pelas que tinham mais dinheiro e, por isso, contemplavam a regente com oferendas e garantiam desse modo lugar na escola exígua e classista da época; até aos dias da tomada de consciência, quando Mariana, contra os receios, legítimos, da mãe, começa a entender que a fome, a miséria e as exclusões sociais podem ser combatidas se conseguirmos mudar o «rumo das coisas». Este entendimento das perversões do mundo, que havia começado quando lhe negaram o acesso às letras e aos números, consolidou-se e ganhou forma ideológica com as agruras de um quotidiano povoado de mortes e de cinzas. A fome, que por dentro nos rói e atordoa, não é um imponderável destino dos pobres, que a ela se têm de sujeitar, mas consequência de uma absurda e desumana repartição das riquezas que todos geramos, sobretudo aqueles cuja mais-valia reside apenas na força dos próprios braços: por isso, há que transformar a sociedade que a uns condena a caldo minguado e a outros deixa na opulência e na fartura. Sociedade assim deve ser combatida para que a vida se transforme, para tornar mais justo o caminho que os oprimidos – essa vanguarda que nos conduzirá ao fulcro do humano que de nós se evade na voragem dos dias – traçam pelas veredas da história. É a noção empírica dessa realidade que conduz Mariana Janeiro à luta, que a incita a combater, a arriscar a pele, a juntar a sua voz ao coro clandestino que sonhava mudar o mundo e, em consequência dessa luta, a cair nas malhas da PIDE.
Mariana Janeiro, neste romance de Joseia Matos Mira, é uma espécie de Mãe gorkiana, que se ergue do seu chão sofrido para lutar contra aqueles que espalham a miséria, a opressão e a fome: um ser que toma consciência face às atrocidades conjunturais e históricas. E, para o saber, bastou-lhe analisar a realidade circundante e agir, lutando ao lado dos seus iguais.
Nuno Bragança tinha um modo estranho de falar de nós entrando-nos nas veias, ou nas entranhas, como escreveu José Bonifácio. Joseia Matos Mira rasa-nos o sangue, o mais sensitivo miolo da memória – a que nos dói mais fundo – para nos deixar ver claro esse rumor de um tempo de cicatrizes e de assombros, numa escrita que se urde em campo e contra-campo, se entrelaça de luz e sombra. Há nesta escrita uma claridade sem mácula nem desespero: uma escrita que se afirma capítulo a capítulo, que plana nas reverberações para estuar na exacta medida do narrado. Mais do que afirmação ideológica – e é bom voltarmos a não ter medo das palavras e do seu extenso significado – este livro é uma metáfora sobre a revolta, tão necessária hoje como o foi no dealbar da segunda metade do século XX. A revolta como supremo grito de cidadania, como forma de dizermos, basta!, como direito fundamental à indignação, para inscrever, neste nosso alheio tempo, a dignidade, como valor de afirmação, como forma de nos negarmos a viver no atoleiro subserviente que nos acenam, passadeira de fuligem que nos estendem para que nos verguemos: é preciso impedir que a sujeição nos apague por dentro, nos tolha a capacidade crítica. Este livro, que percorre a memória dos dias amargos, que acende os pesadelos, alerta-nos para os perigos de a eles voltarmos.
Joseia Matos Mira – que leccionou Literatura Francesa na Universidade McGill, em Montréal e é, actualmente, professora do ensino secundário – pega nesta estrutura romanesca atravessando o factual (esses fragmentos sensitivos da memória) de um épico que grava subliminarmente um tempo de heroicidade, de gesta e de inconformismo colectivo que esteve na origem do 25 de Abril de 1974, para nos dar a ler o retrato intimista, agreste, lúcido e heróico de Mariana Janeiro.
A escrita deste romance percorre, indelével, os contornos narrativos do nouveau roman, conseguindo a autora, nessa orgânica estrutura efabulatória, misturar o ficcional com o histórico, fugindo à linearidade do realismo de causas e distanciando-se de algumas pulsões do neo-realismo que o tema, o ambiente épocal e a clara denúncia que o texto não escamoteia, poderia suscitar. Não se pense por isso que a autora se deixa enredar nas subtis malhas do politicamente correcto: pelo contrário; o romance de Joseia Matos Mira acentua a denúncia das atrocidades com a transcrição, no capítulo 7, de passagens do livro A História da PIDE, de Irene Flunser Pimentel, onde as torturas a Mariana Janeiro são descritas com pormenor e clareza.
De forma inteligente e tecnicamente escorreita, utilizando a elipse com precisão, a autora foge ao fácil, ao já visto, para nos contar esta história singular de uma heroína alentejana, de maneira a um tempo inovadora e sagaz, estilisticamente emotiva e sedutora a lembrar, em breves passagens, o estilo fragmentário de Almeida Faria.
Comemorar Abril, 35 anos volvidos sobre a madrugada que sonhamos, lendo a história de Mariana Janeiro, parece-nos a melhor forma de manter viva a chama desses dias, de manter abertas – mesmo quando os tempos parecem propícios ao regresso dos fantasmas – as portas que Abril abriu; porque foram as marianas e as catarinas, os homens e mulheres deste país que forjaram, com o seu sangue e luta, os dias luminosos que vivemos nesses dias de Abril e Maio. Por elas, por tantos outros que atapetam de urzes e papoilas o chão do Alentejo, é preciso que não deixemos que as portas de Abril se voltem a fechar.
Se não mudámos o mundo demos, nesses anos de brasa, muito trabalho aos censores.
Por impulsos, dizia, escrevíamos de uma forma não necessariamente inspirada (os 10% de inspiração e os 90% de transpiração da gíria), mas expositiva. Ou seja, escrevíamos por imperativos éticos e morais, por mera questão de salubridade mental, num tempo acantonado entre Guernica e Hiroxima, para que a fuligem dos dias nos não tragasse impiedosa: para respirarmos o ar lavado das madrugadas que sonhávamos. Escrever era, para nós, mais que uma trincheira; um acto de sobrevivência, uma urgência, uma rebeldia que nos aconchegava ao mundo e nos permitia suportar o caos.
Se a literatura que então se expunha nos escaparates não era arrumada, impoluta, ou tocada pela genialidade (pelo menos pela genialidade advogada, reaccionariamente, por Fernando Pessoa e, mais tarde, pela geração da Presença), essa trincheira ideológica conseguiu, mesmo cercada, produzir, nessas refregas, muitos poemas e romances que tocaram as margens da grande literatura e são hoje incontornáveis e canónicos textos. Mas havia, isso sim, lisura, frontalidade, inventiva. A pólvora rebentava-nos nas mãos e nós seguíamos carregando a escopeta mais uma e outra e outra vez. Heróis? Nem por isso: vítimas apenas de um tempo de pragas e más colheitas.
O que fazíamos nos cafés, nas tertúlias era o que, modelado a preceito, com paciência de artesão, publicávamos nas editoras e nos jornais que tinham a coragem de nos abrir espaço cúmplice. Andávamos, então, nesta seara de letras, e de muitos ventos adversos, ao mesmo – ou quase, como depois se viu. Escrever e publicar era um risco, como tudo na vida. Não éramos mercenários da escrita; apenas inventores de um mundo outro povoado por gente sofrida, gente de antes quebrar que torcer, que lutava e se erguia do chão com as feridas abertas e o coração generoso sangrando, em tumultos, no peito.
E os livros eram apreendidos, os artigos censurados, os autores perseguidos. Que importava: estávamos vivos e escrevíamos sol!
Hoje, que os malabarismos de entrelinhas não são, aparentemente, necessários, o cortejo que vemos é degradante, rasteiro, a bater no fundo dos fundos – no seu putrefacto lodo. Estômago temos para tanto sufoco. Hábitos, que a memória é um animal voraz. Mas dói, nas dores da alma, se ainda a tivermos de tão em voo desasado ela anda, inquieta e indignada que só o vómito lhe adivinhamos na sombra rasa.
A pífia ideológica deste sucesso bronco, socrático, besunta-nos o intelecto e apetece abrir portas e janelas, mesmo com frio e neve, para que o vento volteje e o mau-cheiro se evada lesto.
Atendamos às montras dos hipermercados, aos impérios de Belmiros e quejandos, os quais, nesta sôfrega compita pelo lucro a todo o trote, nem o livro poupam. Mas não são livros, senhores, o que ali vedes: é plástico não reciclável, anestésicos para um sono profundo, o supremo e soberano império da desordem e dos caos, tornado sofista de absolutos, que não gera a revolta, o sentido crítico mas a submissão mais ultrajante. O contrário, portanto, do que deva ser a literatura. Os supostos caracteres com que a língua se estrutura reduzidos à sua ínfima condição – a de narcótico. Estas coisas em forma de livro só deveriam vender-se com antídotos acopláveis, ou servir para acender lareiras como fazia o detective Pepe Carvalho do malogrado Manuel Vasquez Montalbán.
Ó Alentejo dos pobres/reino da desolação/Não sirvas quem te despreza/é tua a tua nação. Não vás a terras alheias/lançar sementes de morte/é na terra do teu pão/que se joga a tua sorte./Terra sangrenta de Serpa/terra morena de Moura/vilas de angústia em botão/dor serrada em Baleizão. Ó margem esquerda do Verão/Mais quente de Portugal/Margem esquerda deste amor/Feito de fome e de sal. A foice dos teus ceifeiros/Trago no peito gravada/Ó minha terra morena/Como bandeira sonhada.
Esta «Margem Sul», de Urbano Tavares Rodrigues, «canção patuleia» que Adriano Correia de Oliveira compôs e cantou como só ele sabia, é dos hinos mais intensos e impressivos que diz, com a lisura rasante da angústia em botão, a saga de um povo que viveu séculos de opressão e esconjuro, primeiro, sob a pata fanática e bestial da Inquisição, depois, sofrendo a fome, as perseguições, a tortura e a morte, no longo e absurdo consulado salazarento.
Nenhum outro povo deste País viveu e sofreu tão longo período de persecutória e cruel opressão e, apesar disso, continuou a lutar e a acreditar que era possível mudar-lhe a sorte, que nada é imutável nem eterno, que o homem pode, acreditando, torcer o aziago destino.
A Inquisição de Évora, que durou de 1533 a 1668, perseguiu, torturou e condenou às fogueiras regeneradoras, milhares de alentejanos (e não só) suspeitos de heresias, de serem cristãos-novos, de gostos sexuais considerados desviantes – como a bigamia e a mancebia – de judaísmo, luteranismo, ateísmo, bruxedo. Mas, de igual modo, a Inquisição exerceu o seu magistério de terror sobre quem não obedecesse às ordens dos grandes senhores da terra, quem se recusasse a trabalho escravo, quem se rebelasse contra o poder feudal.
É essa recusa ancestral, essa dignidade do humano, que o salazarismo tenta vergar com a sua corte de bufos e eunucos, o seu exército de delatores e a sua sinistra polícia secreta.
Uma das vítimas da repressão do ditador foi Mariana Janeiro, costureira de Baleizão, que a PIDE prendeu em Abril de 1964 e sujeitou à tortura do sono durante 18 dias e noites. Presa e seviciada barbaramente – de uma das vezes, os esbirros chegaram a queimar-lhe os olhos com fósforos –, Mariana Janeiro nunca falou, suportando estoicamente a barbárie, recusando-se a revelar os nomes dos seus camaradas que pertenciam ao Comité Local de Baleizão.
Mariana Janeiro faleceu a 6 de Abril de 1993, formalmente vítima de AVC mas, na realidade, vitimada por dentro, até ao osso da dignidade mais elementar, pelas sevícias sofridas às mãos dos torcionários da PIDE, nas diversas vezes em que esteve presa.
É a história singular de Mariana Janeiro que Joseia Matos Mira, escritora natural da terra de Catarina Eufémia, nos conta, de forma sentida, empolgada e exemplar, no romance Joana Campeoa.
O romance parte das memórias de infância da autora, percorre esse universo de medo e raiva dos anos mais negros do fascismo, para nos dizer da fome, do desencanto, do clamor sofrido de um povo que, mesmo no estertor infamante da miséria, foi capaz de sonhar, de se erguer, de se indignar até à revolta.
Joseia Matos Mira traça um retrato sensível e impressivo de Mariana Janeiro, desde a infância, quando esta, levada pela mãe e, mais tarde, sozinha, teimava em ir à escola e era sempre preterida pelas que tinham mais dinheiro e, por isso, contemplavam a regente com oferendas e garantiam desse modo lugar na escola exígua e classista da época; até aos dias da tomada de consciência, quando Mariana, contra os receios, legítimos, da mãe, começa a entender que a fome, a miséria e as exclusões sociais podem ser combatidas se conseguirmos mudar o «rumo das coisas». Este entendimento das perversões do mundo, que havia começado quando lhe negaram o acesso às letras e aos números, consolidou-se e ganhou forma ideológica com as agruras de um quotidiano povoado de mortes e de cinzas. A fome, que por dentro nos rói e atordoa, não é um imponderável destino dos pobres, que a ela se têm de sujeitar, mas consequência de uma absurda e desumana repartição das riquezas que todos geramos, sobretudo aqueles cuja mais-valia reside apenas na força dos próprios braços: por isso, há que transformar a sociedade que a uns condena a caldo minguado e a outros deixa na opulência e na fartura. Sociedade assim deve ser combatida para que a vida se transforme, para tornar mais justo o caminho que os oprimidos – essa vanguarda que nos conduzirá ao fulcro do humano que de nós se evade na voragem dos dias – traçam pelas veredas da história. É a noção empírica dessa realidade que conduz Mariana Janeiro à luta, que a incita a combater, a arriscar a pele, a juntar a sua voz ao coro clandestino que sonhava mudar o mundo e, em consequência dessa luta, a cair nas malhas da PIDE.
Mariana Janeiro, neste romance de Joseia Matos Mira, é uma espécie de Mãe gorkiana, que se ergue do seu chão sofrido para lutar contra aqueles que espalham a miséria, a opressão e a fome: um ser que toma consciência face às atrocidades conjunturais e históricas. E, para o saber, bastou-lhe analisar a realidade circundante e agir, lutando ao lado dos seus iguais.
Nuno Bragança tinha um modo estranho de falar de nós entrando-nos nas veias, ou nas entranhas, como escreveu José Bonifácio. Joseia Matos Mira rasa-nos o sangue, o mais sensitivo miolo da memória – a que nos dói mais fundo – para nos deixar ver claro esse rumor de um tempo de cicatrizes e de assombros, numa escrita que se urde em campo e contra-campo, se entrelaça de luz e sombra. Há nesta escrita uma claridade sem mácula nem desespero: uma escrita que se afirma capítulo a capítulo, que plana nas reverberações para estuar na exacta medida do narrado. Mais do que afirmação ideológica – e é bom voltarmos a não ter medo das palavras e do seu extenso significado – este livro é uma metáfora sobre a revolta, tão necessária hoje como o foi no dealbar da segunda metade do século XX. A revolta como supremo grito de cidadania, como forma de dizermos, basta!, como direito fundamental à indignação, para inscrever, neste nosso alheio tempo, a dignidade, como valor de afirmação, como forma de nos negarmos a viver no atoleiro subserviente que nos acenam, passadeira de fuligem que nos estendem para que nos verguemos: é preciso impedir que a sujeição nos apague por dentro, nos tolha a capacidade crítica. Este livro, que percorre a memória dos dias amargos, que acende os pesadelos, alerta-nos para os perigos de a eles voltarmos.
Joseia Matos Mira – que leccionou Literatura Francesa na Universidade McGill, em Montréal e é, actualmente, professora do ensino secundário – pega nesta estrutura romanesca atravessando o factual (esses fragmentos sensitivos da memória) de um épico que grava subliminarmente um tempo de heroicidade, de gesta e de inconformismo colectivo que esteve na origem do 25 de Abril de 1974, para nos dar a ler o retrato intimista, agreste, lúcido e heróico de Mariana Janeiro.
A escrita deste romance percorre, indelével, os contornos narrativos do nouveau roman, conseguindo a autora, nessa orgânica estrutura efabulatória, misturar o ficcional com o histórico, fugindo à linearidade do realismo de causas e distanciando-se de algumas pulsões do neo-realismo que o tema, o ambiente épocal e a clara denúncia que o texto não escamoteia, poderia suscitar. Não se pense por isso que a autora se deixa enredar nas subtis malhas do politicamente correcto: pelo contrário; o romance de Joseia Matos Mira acentua a denúncia das atrocidades com a transcrição, no capítulo 7, de passagens do livro A História da PIDE, de Irene Flunser Pimentel, onde as torturas a Mariana Janeiro são descritas com pormenor e clareza.
De forma inteligente e tecnicamente escorreita, utilizando a elipse com precisão, a autora foge ao fácil, ao já visto, para nos contar esta história singular de uma heroína alentejana, de maneira a um tempo inovadora e sagaz, estilisticamente emotiva e sedutora a lembrar, em breves passagens, o estilo fragmentário de Almeida Faria.
Comemorar Abril, 35 anos volvidos sobre a madrugada que sonhamos, lendo a história de Mariana Janeiro, parece-nos a melhor forma de manter viva a chama desses dias, de manter abertas – mesmo quando os tempos parecem propícios ao regresso dos fantasmas – as portas que Abril abriu; porque foram as marianas e as catarinas, os homens e mulheres deste país que forjaram, com o seu sangue e luta, os dias luminosos que vivemos nesses dias de Abril e Maio. Por elas, por tantos outros que atapetam de urzes e papoilas o chão do Alentejo, é preciso que não deixemos que as portas de Abril se voltem a fechar.